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Artigo: O Escolhido

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Felipe Moura

A tarde começava seca, poeirenta e, mesmo sendo inverno, fazia calor. De súbito, um charreteiro puxando pelo cabresto seu cavalo, que por sua vez puxava uma charrete abarrotada de tralhas, chegava. Trazia consigo umas sacolas com algo semelhante a macarrão, pães e outras miudezas. Algumas dessas sacolas estavam penduradas nas ferragens; outras, porém, jaziam sobre a “mercadoria” que inspirou este texto.

O homem, dono da charrete, do cavalo, das tralhas e de tudo o que transportava, é um senhor já com o bico da botina na terceira idade, mas com fumos de juventude. Quem o conhece, sabe de suas vaidades e preferências juvenis. Mas, é outro o objetivo deste escrito. Pouparei o leitor dessas descrições e me abstenho de falar da vida alheia.

“Toma, menino… Carne! Não quer levar pra você?” Mal acabou de dizer tais palavras, foi arrancando de dentro de sua charrete uns ossos ensanguentados e os atirou a uma matilha esfomeada, que se aproximava. Sobre aquela barafunda, havia uma cabeça bovina que exibia dois cortes profundos. Morta a machadadas, a rês fora atingida pela lâmina da ferramenta pelo menos duas vezes. Um corte aparecia à direita e acima, bem próximo à cavidade ocular esquerda; o outro, mais profundo, no meio do crânio. “Menino, deu um trabalho danado!…” – dizia, enquanto descarregava parte da mercadoria e continuou.

“Precisa ver, moço. Lutaram com ele a noite inteira. Tinha dezessete arrobas! Cê num gosta disso não, né? Mas o bicho foi feito pra morrer…, senão, nóis num come carne. Né, Zezé? Aí, o Zezé, seu pai, sabe!…” Foi dizendo essas e outras coisas enquanto separava umas partes para o  Adão, para o irmão e para mais alguém. Parou por um instante e observou que um pedaço, que atirara aos cães, estava bonito. Pegou de volta, mesmo estando sujo da grama seca e do pó do terreiro. “É só lavar, né menino? Aí, só de passar a mão já fica limpinho… Vou dar pro Adão, pois tem muita carne nele e o Adão gosta. Acho que o cachorro nem viu.”

Abominável terá sido a cena desse abate. À tardinha, pastando entre seus companheiros, o “eleito” levanta a cabeça e arma as orelhas em direção a quem chega. Talvez seja um pouco de ração com sal. É comum tais agrados, principalmente em tempos de pastagens ralas e secas. Mas, dessa vez o dono não veio só. Uma expectativa seguida de curiosidade toma conta do rebanho. “Quem veio nos visitar?…”, parecem indagar-se.

Sem o tal tira-gosto, mas com um porrete nas mãos, o dono se aproxima e toca todos para o curral. A expectativa aumenta e um mau pressentimento os apavora: “O que será desta vez?” Já no curral, atropelam-se correndo de um lado para o outro. Ajudado pelo companheiro, o dono abre a porteira e começa liberá-los, controlando a saída. O “escolhido” se apresenta, mas leva uma pequena pancada no focinho. Recua e se esconde no meio dos companheiros, já acometido por uma inesperada diarreia. Agora, mais determinado, adianta-se novamente. Esbarra em duas vaquinhas moleironas e aponta a cabeça diante do vaqueiro em guarda: outra pancada no focinho. “Agora doeu pra valer!”. Volta-se para o fundo do curral enquanto suas arredias companheiras são “convidadas” a sair. De cabeça baixa e fechando freneticamente os olhos diante do algoz, elas empreendem um trote ligeiro até alcançar o pasto, onde se reúne o grupo amedrontado. A porteira se fecha. Lá dentro, em pânico, impacienta-se o “escolhido”.

Felipe Moura

Fonte: www.feldades.blogs.sapo.pt

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